MS do Clube referente a distância de escolas

O decreto 11.615/julho-23 impôs, no art. 38, que [novos?] clubes de tiro estejam à distância superior a um quilômetro de qualquer estabelecimento de ensino. E, no § 1º, os [antigos?] que não estiverem a essa distância ‘deverão adequar-se’ no prazo de dezoito meses, dezembro de 2024.

Cinco análises jurídicas são possíveis.

Uma primeira, com dois questionamentos. Um, o da retroatividade normativa imposta, atraindo atenção à proteção dos direitos subjetivos para lá de constitucionais, o direito adquirido e o ato jurídico perfeito, relativamente a clubes já existentes e em pleno funcionamento antes do decreto. O outro, de ordem física, no parágrafo § 1º, no questionamento de como se remove um bem de raiz, na hipótese de um imóvel efetivamente construído para funcionar como estande de tiro, um quilômetro ‘para lá’. Sim, há clubes que foram edificados sob especificidades de engenharia aplicada, e não meramente empresas ativadas por alvará num imóvel já existente.

Direito adquirido e ato jurídico perfeito são conceitos mais que legais, e também até ‘mais’ que constitucionais, vez que inseridos no rol das cláusulas pétreas, Constituição da República, art. 60, § 4º, inciso IV. Direito adquirido sempre obedeceu a dualidade de Gabba: produção por fato idôneo, e incorporação ao patrimônio do titular; contornos que se veem na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, art. 6º, § 2º. Pois, um direito subjetivo já plenamente exercitável. Na quase totalidade dos casos dos clubes de tiro, não apenas um direito dotado dessa exercitabilidade, mas efetivamente em plena atividade. E ato jurídico perfeito não somente uma situação consumada ou direito consumado, mas um direito inatingível por lei nova, ante gozar de status de direito esgotado.

Por isso mesmo, a situações jurídicas consolidadas é exigido um grau de excepcionalidade para eventual desconstitutividade que costuma não prescindir de sentença judicial, precisamente para atacar um caso concreto, não uma mera ‘lei’ nova abstrata e geral, sob pena de inarredável afetação ao princípio da estabilidade das relações jurídicas.

Por esta primeira análise mais exsurge um direito aos clubes de tiro do que à nova norma que busque retroceder eficacialmente em efeitos jurídicos a situações perfectibilizadas.

Numa segunda análise, interessa a dicotomia jurídica entre ‘autorização’ – ato administrativo unilateral, discricionário e precário pelo qual a Administração torna possível a realização de alguma atividade; e ‘licença’ – ato  administrativo unilateral e vinculado pelo qual a Administração faculta a quem preencha os requisitos legais o exercício de uma atividade, verdadeiro reconhecimento a um direito subjetivo do interessado, por isso inegável pela Administração quando preenchidos os requisitos de obtenibilidade. Hely Lopes Meirelles (Direito Administrativo, 29ª ed., 2004) ensina que a licença é definitiva. Noutra análise, a feliz síntese de Zanella di Pietro (Direito Administrativo, 35ª ed., 2022), ‘a autorização é ato constitutivo e a licença é ato declaratório de direito preexistente’. Vê-se que o caráter da precariedade – que não entra na licença- será decisivo no sopesamento da questão, potencializado ainda pela aplicação à principiologia constitucional do art. 170, especificamente: a propriedade privada, a livre concorrência, o tratamento favorecido às empresas de pequeno porte, e o livre exercício da atividade econômica.

No caso dos clubes de tiro, com a restrição retroativa do Decreto, aumenta a dificuldade com a funcionalização dos conceitos na presunção de definitividade própria da licença, potencializada nos princípios constitucionais citados. Eventual afetação, em regra, não pode se dar por normatividade geral do Estado, e note-se, aqui sequer lei em sentido formal, mas mero Decreto, mas somente por regular sentença judicial como resultado de situação casuística e aplicada a um caso concreto.

Há mais um complicador, o decreto 10.030/19, não revogado no que se trata aqui, no Anexo I, Regulamento de Produtos Controlados, artigo 139, cuida especificamente da matéria, clubes credenciados pelo Comando do Exército, sendo que no § 1º lê-se: ‘Os estandes de tiro de pessoas jurídicas a que se refere o caput atenderão aos requisitos estabelecidos pelo Poder Público municipal quanto à sua localização.’ De aí, vê-se ter havido expressa outorga tanto à legiferação quanto à atribuição administrativa municipais para regulação situacional, nos planos concretos distancial, de qualidade de vizinhança e de geografia, à localização de clubes, então em regulação pelo interesse local. Esta expressa ‘outorga’ ao Poder Público municipal robustece dois argumentos jurídicos centrais: o da boa-fé por parte dos empresários que compuseram clubes, lastreado no princípio da segurança jurídica; e a indiscutível atribuição administrativa na concessão dos alvarás – fator igualmente compositivo de direito adquirido e ato jurídico perfeito- para funcionamento dos clubes de tiro, atendido, ex vi legis, o interesse local até então não condicionado.

Há uma terceira análise, paradoxalmente óbvia, mas substancialmente negativa e metodologicamente complexiva: a de que inexistem, no Direito, direitos absolutos. Esta ductibilidade própria dos conceitos jurídicos impõe sabido grau de desequilíbrio ou necessidade de dosimetria epistemológica, no mínimo relativizante para a conclusão de toda e qualquer questão.

Em quarta análise, totalmente casuística, muitos Municípios estão reagindo, legislando aposteristicamente em nome do constitucional ‘interesse local’, no sentido de blindar seus clubes de tiro já estabelecidos, em então possíveis proximidades a entidades de ensino.

Aqui residualizam-se duas subquestões jurídicas, acerca da competência legislativa privativa não enumerada (implícita), Constituição, art. 30, I, sobre interesse local, e a competência legislativa suplementar, art. 30, II; e um cruzamento temático acerca da competência legislativa concorrente, art. 24; bem como o combinado sistema de competências constitucionais, em competências exclusivas, privativas e principiológicas.

Como à União, segundo a Constituição da República, cabem matérias e questões de interesse geral; aos Estados matérias de interesse regional; e aos Municípios o interesse local, princípio da predominância do interesse, o desafio epistemológico seria a conjugação de forças conceituais, para o caso das leis municipais de blindagem de clubes, entre o interesse geral da União, impondo uma deslocação dos clubes de tiro para mais de um quilômetro das escolas, e uma legiferação atinente a possível interesse local no sentido de resistir a esta reorganização geral da União. Ocorre que pelo estudo de o que seja ‘interesse local’, a normação municipal não pode colidir com normas federais ou estaduais existentes, não podendo o Município colidir com os objetivos gerais, sejam da União ou dos Estados. Além do que, mesmo a superveniência de lei federal ou estadual imprestabiliza, por suspensão eficacial, a normativa municipal.

Assim, as leis municipais de bloqueio ou reação de proteção a clubes de tiros – que não invoquem e se resumam expressamente a direito adquirido e ato jurídico perfeito-, na ótica do chamado condomínio competencial, se mostram juridicamente equivocadas, posto que formalmente até se anunciem como visando à ordenação do solo urbano, típico interesse municipal, mas, igualmente não dotado de absolutividade material, cedendo a um interesse federal maior.

Ainda, em que pese inexistir hierarquia entre entes federativos, há efetiva hierarquia de interesses, vez que os mais amplos, da União – nacionalizando o essencial-, preferirão aos mais restritos, dos Estados – a fortiori, dos Municípios-, o critério da preponderância de interesses. Assim, só em caso de a lei federal ser inconstitucional é que a lei local poderá viger sem o chamado bloqueio de competência. À higidez da lei federal, com disciplina generalizante, a local não pode operar, muito menos contradizer aquela disciplina. E pelo princípio da simetria, cabe ao Município a absorção necessária das regras constitucionais federais.

Cretella Júnior (Comentários à Constituição, v. IV) cita Zanobini para mostrar que autonomia municipal é criar um ‘direito próprio’, não só reconhecido pelo Estado, mas também adotado no sistema jurídico, ainda que o conceito de autonomia vise a prover, por si mesmo, os órgãos (!) do governo local, a eleição de prefeito e vereadores. Substancialmente, entretanto, no tema do interesse local, área de possibilidade municipal, tal interesse deve atender primeira e diretamente ao agrupamento humano local, mas atender igualmente a interesses do Estado e de todo o país, apontando-se como indevida a invasão da União na competência exclusiva (!) da Comuna. Por aqui, vê-se que a nova norma geral da União – o Decreto- de que todos os [novos!] clubes do país situem-se a mais de um quilômetro de estabelecimentos de ensino não se mostra como lesão à autonomia local deste ou daquele Município, dada a abstração e principiologia temáticas que então nortearão a situação para todo o país.

Meramente a título de exemplo, os Municípios de Araranguá, Blumenau, Campo Grande, Campos Belos, Conchas, Forquilhinha, Criciúma, Itapetininga, Jaraguá do Sul, Lucas do Rio Verde, Maceió, Bagé, Mato Grosso do Sul, Novo Hamburgo, Petrópolis, Piracicaba, Porto Alegre, Pouso Alegre, Ribeirão Preto, Rosário do Sul, Santa Maria, São Miguel do Oeste, dentre outros, reagiram ao Decreto federal, com leis municipais tentando ‘garantir’ seus antigos ou novos clubes de tiro.

Finalmente, como quinta análise, o fato do príncipe, instituto jurídico previsto para contratos administrativos (Lei 8.666, art. 65, II, d), bem como na CLT, art. 486, hipótese esta que interessa, se a União impuser o fechamento de algum clube, a que a lei garante o pagamento da indenização trabalhista ao governo responsável pela cessação da atividade empresarial.

A título de conclusões sintetizam-se possíveis soluções ou pistas teóricas.

Quanto à primeira análise, há a situação inultrapassável de direito adquirido e ato jurídico perfeito, relativamente a clubes já existentes, maxime os construídos e edificados para este fim, cuja irremoção ser-lhes-á intangível, havendo aí direta impossibilidade à União em gerar afetação retroativa, principalmente com a outorga-cepa de boa-fé expressa em Decreto ao Poder Público municipal acerca da localização.

À segunda, há o direito subjetivo à licença de alvará, potencializado pelos princípios constitucionais da Ordem Econômica que transformam a análise, originariamente apequenada, em grandiosa, ante esses princípios invocáveis a seu socorro. Aqui também incide o complicador da outorga decretal expressa ao Poder Público municipal para resolver a questão da localidade, reforçando, minimamente, a questão de um direito anterior então inatacável por lei nova.

A terceira análise é apenas instrumental, no sentido de que, se substancialmente não tem relevância autônoma, metodologicamente tê-lo-á, invadindo qualquer solução que não mensure um sopesamento do cipoal jurídico a ser tecnicamente ponderado e interpretado. À inexistência do chamado direito absoluto quanto na ductibilidade metodológica então impostos em análises jurídicas, a fortiori, nos modelos científicos de interpretação, veem-se histriônicos curiosos e achistas, verdadeiros juristas de churrasco, repletos de certezas rápidas legitimando uma cultura do direito idiotizado.

Na quarta análise, certamente uma das substanciais mais importantes, há uma natural atração competencial à União para assuntos bélicos, o que empece eventual disputa legiferante municipal relativa à matéria, tornando ilegítimas as leis municipais reativas e casuísticas que visam a proteger as pessoas jurídicas privadas da localidade, mantendo-se, entretanto, a inatingibilidade eficacial do Decreto relativamente a clubes já instalados, pelos direitos subjetivos constitucionais impeditivos de retroação normativa.

Finalmente, na quinta análise, ligada ao critério da preponderância do interesse, há alguma dificuldade substancial. Mesmo que o interesse federal não sobrepujasse o municipal, a regra, ainda há, no caso em tela, a obediência daquele interesse ao princípio da boa-fé, válido para toda e qualquer relação jurídica brasileira, em organizar distância uniforme para os clubes de tiro e estabelecimentos de ensino, em contraposição a um casuísmo municipal nas leis meramente reativas. Aponte-se ainda certa subquestão substancial da pressuposta impossibilidade de vazamento de projétil de um clube de tiro, dada a hermeticidade obrigatória física imposta para autorização destes estabelecimentos. Pelo menos esta é a regra. A ser crível tal impossibilidade de vazamento de projéteis, a norma do distanciamento se torna írrita em conteúdo, reduzindo-se a uma cobrança socialmente provinciana, politicamente correta ou apenas fútil.

Como conclusão final, ainda que os decretos e a portaria última, regulando a matéria, contenham efetivamente deficiências jurídicas e substanciais, o interesse geral da União em organização temática para o país, aliado à competência para material bélico, faz prevalecer, no caso da distância clube-estabelecimentos de ensino, o interesse e a razão federais, sempre respeitadas as inultrapassáveis situações de direito aquirido.

 

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